Escritor, membro da Academia
Piauiense de Letras
Há muitas funções para o banheiro. A primeira é a do banho como o
nome indica, mas não a mais importante, porque há pessoas que passam
dias sem fazer este acerto de conta com a limpeza do corpo. O normal
seria fazê-lo uma vez por dia. No Brasil é assim. Na Europa é apenas uma
vez por semana, dizem. A segunda, que engloba também a terceira, é
fazer necessidades fisiológicas – expressão muito vaga, pois nossas
necessidades fisiológicas são muitas. Sem meias-palavras, essas
necessidade fisiológicas se referem a mijar e fazer cocô. E são para
estas que mais recorremos ao banheiro. Daí porque o leitor já deve ter
ouvido, só em nossa língua, outros sinônimos mais usados para a palavra
banheiro: privada, latrina, reservado, sentina, sanitário, etc. Mas há
uma função mais nobre, no caso a quarta que foi comentada numa crônica
do escritor Rubem Alves, do livro “Pimentas”, editora Planeta,
São Paulo, 2012. É a da leitura. O banheiro é um lugar muito próprio
para leitura de vários tipos: literatura, humor, poesia, conhecimentos
gerais... E até romances. Eu acabo de ler o romance "Onde vais, Isabel”,
de Maria Helena Ventura, de quase 300 páginas, boa parte da sua leitura
feita no banheiro - o local mais fresquinho da casa e mais silencioso.
Sem mentiras. Dessa autora aprendi que o D. Dinis, o trovador, 6º rei de
Portugal, casado com D. Isabel, santificada pelo Papa da época, foi
quem decretou o dialeto português oficial em Portugal, dialeto ainda
ligado ao galego, ao espanhol e outros falares locais. Aprendi também
que D. Isabel, quando saiu do reino de Aragão para desposar D. Dinis,
levava um grande tesouro consigo - um segredo - até chegar ao seu
destino e entregá-lo ao rei.
E então, para que o nome “banheiro”, se às vezes nem chuveiro o
tal reservado possui? Por que não o nome de privada? Mas, não há meio, a
gente está apertado na rua, entra numa loja ou repartição, e pergunta: -
Aí tem um banheiro? Ou onde fica o banheiro? Dá licença? E vai lá, na
privada. Mesmo porque não há privadas públicas e quando as há são
insuportáveis, não têm a menor conservação, a gente pode até adoecer
servindo-se delas. Aliás, um dia desses fui postar umas cartas na
agência central dos Correios e tive necessidade de urinar – essa é uma
necessidade que ocorre sempre, visto que o calor tropical exige que se
beba muita água. A funcionária me disse que não havia privada para os
clientes, somente um banheiro reservado aos funcionários. Depois que
reclamei que era de lei toda repartição que atende ao público ter um
banheiro para quando alguém precisasse, ela disse que me levaria (e
levou) ao dos funcionários, como se fosse um favor e não uma obrigação
legal.
Há uns dois anos, eu vivia numa casa grande, mas troquei por um
apartamento, condizente com a vida moderna, quando não se pode pagar
mais do que um empregado doméstico, quase sempre uma cozinheira que
também lave a roupa. Mas, na casa, mesmo mais ou menos ampla, sempre
achei interessante ler no banheiro. Ali, ninguém era perturbado, o que
não me surgiu foi a idéia de fazer uma bibliotequinha dentro. E aqui, no
apartamento, propus seriamente a biblioteca. Depois da instalação de um
ventilador, iniciativa da mulher, em cada banheiro, minha proposta
tinha muito a ver. Ela riu como que aprovando. Não sei se minha proposta
vai ser executada. No banheiro, eu posso ler meus poetas Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Castro Alves e
até Camões, quem sabe, “Os Lusíadas”. Por falar nesse imenso poema que
fez a nossa língua firmar-se verdadeiramente como língua de civilização,
podemos dizer que ele traz uma sabedoria imensa em suas páginas, e só
no silêncio do banheiro é que poderíamos interpretá-lo em profundidade.
No banheiro, nada deve ter a nos atormentar: rádio, celular e de outras
maquininhas de mão cujos nomes não sei. Vou dizer apenas uma, como já
ouvi: “ipade”. Mas é escrito “ipode”. E pode? No banheiro,
não. Contracultura. Descartável. O que é salvo num segundo, no seguinte
já é deletado... Cultura não se descarta: conserva, cultua. E a gente
pode ficar tranqüilo que guardará por muito tempo, incorporado, o que
leu, sentiu e sonhou para própria vida. Sim, porque no banheiro se pode
até sonhar com emprego, namorada, divulgação de algo interessante e de
interesse para a riqueza cultural da pátria. Há melhor sabedoria do que
ter aprendido a viver bem? Pela cultura se aprende a viver bem. Não
pelos livros de auto-ajuda, mas se possível por todos os livros de alta
ajuda: romances, contos, novelas, história do país e do mundo, etc. O
exemplo da leitura, no banheiro, deve ser repassado às crianças, lugar
principal para começar a educação delas: Não jogar papel servido no chão
(pra isto, lá deve ter um cesto), dar descarga depois de servir-se, e,
enquanto se serve, ler toda a boa literatura infantil, de Monteiro
Lobato a Cecília Meireles, chegando, certamente, até os mais novos
escritores – que são muitos.
Daqui a pouco, como sugeriu humoristicamente Rubem Alves, o papel
higiênico deve ser todo ele impresso com pensamentos dos melhores
pensadores e poetas, de Sócrates a Jesus Cristo, de Neruda a Hermann
Hesse, de Adélia Prado a Mário Quintana e Manoel de Barros. Do último,
ele citou um verso bem a propósito deste tema e crônica, com o qual
quero terminar: “Também as latrinas desprezadas que só servem para ter grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas”.
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(Publicado no jornal O Dia, Teresina, 03.11.2012)
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